Uma das metáforas mais poderosas sobre a condição humana e sua relação com a liberdade é a do camelo, do leão e da criança. Ela foi empregada pelo filósofo alemão Fiedrich Nietzsche no século 19 e até hoje é utilizada para demonstrar as diferentes metamorfoses da consciência e nossa possibilidade de sermos livres. Diz ele que o homem, ao nascer, é como o camelo. É obrigado a comer, assimilar e armazenar, por um bom tempo, grande parte das histórias e ensinamentos acumulados pela humanidade ao longo de séculos. Ele vai ruminar essa quantidade enorme de dados até construir seu sistema de valores e crenças que, na maioria das vezes, já está alinhado com valores e crenças organizadas em religiões, sistemas políticos, filosofias ou doutrinas.
A maior parte da humanidade, diz Nietzsche, vive no estado de camelo. Os homens-camelos não têm potencial crítico para se afastar da própria crença, analisá-la de forma isenta e descobrir seus pontos falhos ou ângulos distorcidos. Principalmente porque ela está baseada na emoção, não na razão.
Uns poucos entre os camelos chegam ao estado de leão. Normalmente, os grandes felinos se insurgem contra isso tudo que está aí, como se dizia na década de 1970. Leões são geralmente líderes e, por isso, têm enorme influência junto aos camelos. Por isso mesmo, muitas vezes são feitos em pedacinhos por eles ou, então, por outros leões na defesa de seu território. O problema do leão é que, na maioria dos casos, ele ainda está preso ao que ele é contra. Como diz o mestre espiritual Osho, que comentou a teoria de Nietzsche no livro “Liberdade, a coragem de ser você mesmo”, a grande maioria da humanidade está empacada no estado do camelo; a minoria está empacada no estágio do leão. A maioria significa as massas; a minoria, a intelligentsia(pintores, músicos, cineastas, intelectuais, escritores, uma boa parte dos pensadores…). O leão, continua Osho, evolui das massas e se faz por si mesmo. Ele é basicamente mental e egóico. Já para se formar a criança é preciso uma revolução interior. A criança é a pessoa que passou por uma transformação interna absolutamente radical. Ela tornou-se um outro ser, renasceu. É pós-mental e pós-egóica. O camelo vive no passado, o leão no futuro e criança aqui e agora. Ela é a única realmente livre.
De lagarta a borboleta
Um dos mais precisos retratos da condição humana foi traçado pelo pensador Jiddhu Krishnamurti. Dizia ele que nós, seres humanos, somos os mesmos que éramos há milhares de anos: ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e desesperados, com ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma estranha mistura de ódio, medo e ternura; somos ao mesmo tempo violência e paz. Afirmava que, embora os tempos modernos tivessem trazido mais conforto, segurança e tecnologia, psicologicamente continuávamos os mesmos. E as estruturas sociais também, já que elas são o resultado direto de nossa condição interior.
Então a pergunta que Krishnamurti faz é: o que podemos fazer para promover em nossa essência uma mutação radical para que brote a fonte do amor e da afeição em nós? Sua resposta é olhar, observar. Prestar atenção verdadeiramente em tudo o que está dentro e fora de nós. Ver as correntes que nos prendem, observar os grilhões a que estamos atados, as mentiras, os sonhos, as fantasias. Um encontro cara a cara com a verdade, cada dia mais profundo. E quando aprendermos a olhar de maneira tão sincera e real, disse Krishnamurti, tudo se esclarecerá. A visão estará mais límpida e desimpedida.
Krishnamurti acreditava que, ao se livrar do enorme peso das tradições, religiões e ideologias e do seu próprio passado, o indivíduo ganhava uma carga extraordinária de energia e vitalidade. Criava então condições internas e força suficientes para ser livre. Ele nos propõe sermos como uma criança, que pode viver tranqüilamente no mundo. É criativa, leve, solta. Embora o pensador indiano não acreditasse no potencial transformador das religiões, pode-se dizer que alguém, ao viver o âmago de um ensinamento espiritual, como Buda ou Jesus, também conquista essa mesma liberdade e pureza. Mas será que nós, pobres mortais, também a atingimos?
Prya
Para o pensador francês Gilles Deleuze, ser livre é seguir a vibração pulsante do nosso coração. Como um surfista atrás daquela onda perfeita, um aplicado músico de jazz que busca o swing, devemos estar atentos ao que nos torna vibrantes, brilhantes. Não perder de vista o que nos deixa vivos é uma bela placa rumo à liberdade de ser. Porque, quando nos sentimos energéticos e brilhantes por dentro, manifestamos o que é mais real em nós.
Nesse sentido, Deleuze se aproxima muito do próprio significado original do termo liberdade. A palavra ‘prya’, em sânscrito, que significa aquilo que se ama e que dá prazer e alegria, deu origem à palavra free (livre), em inglês. Prya é muito mais do que se libertar de alguma coisa, como quer o termo latino. Prya é, simplesmente, ser feliz!
Mais uma vez, e nessa mesma direção, o mestre Osho nos ajuda. A liberdade tem dois aspectos: a liberdade de e a liberdade para. Ser livre dos pais, da igreja, da empresa, de prisões consentidas não significa muita coisa. É uma liberdade negativa. A pergunta é: ser livre para quê? Ser livre para ser, para criar, para se expressar, isso é o que importa. As pessoas criativas são belas, felizes, plenas, e vivenciam a vida ao máximo, diz ele.
Café no Deux Magots
Talvez ninguém tenha falado tanto e tão profundamente sobre a liberdade no século 20 quanto o filósofo francês Jean-Paul Sartre. Para os existencialistas franceses, que costumavam se reunir em cafés como o Flore e o Deux Magots, a liberdade era a condenação do ser humano. Sua múltipla possibilidade de escolhas o colocava numa situação sem escapatória, sem saída. Para Sartre, o homem era condenado a escolher, sempre e sempre, pois ele é a própria essência da liberdade.
É um desafio e tanto: nos descobrirmos como seres que anseiam pela liberdade, e da liberdade vivenciada de uma determinada maneira, particular a cada um. Para conhecer esse ponto fundamental de uma existência, vale qualquer esforço.
Amados grilhões
Como você realmente gostaria de ser lembrado na vida? O poeta indiano Rabindranath Tagore tinha certeza de que gostaria de ser reverenciado como um homem livre, que viveu ao máximo seu próprio ser. Porém, também foi Tagore quem escreveu que desejava a liberdade mas que também amava tudo aquilo que o acorrentava na vida, que ele chamou de meu manto de poeira e morte. Ele era como qualquer um de nós: querendo ser livre mas ainda assim amando e desejando aquilo que o agrilhoava.
Mas a própria liberdade parece não se importar muito com nossas correntes e o estranho (mas compreensível) amor que dedicamos a elas. O belo e famoso soneto da poeta americana Emma Lazarus, Novo Colosso, aos pés da Estátua da Liberdade, em Nova York, dá as boas-vindas aos fracos e desesperados como nós, que desejam ser livres. O poema foi dedicado aos milhões de imigrantes que chegavam aos Estados Unidos entre o fim do século 19 e o início do século 20, gente que ansiava por liberdade política, religiosa, econômica. Para eles, a deusa oferece, generosamente, a luz brilhante de sua tocha.
Livros para saber mais
As Conexões Ocultas, Fritjof Capra, Cultrix-Amana-Key
Liberdade, a Coragem de Ser Você Mesmo, Osho, Cultrix
Liberte-se do seu Passado, Jiddhu Krishnamurti, Cultrix
Vitaminas Filosóficas, Theo Ross, Casa da Palavra
Fonte: Vida Simples