Descartar parte de sua vida pode revelar tantas coisas com relação a si mesmo quanto várias sessões de terapia. Aquilo que você guarda e o que joga fora, o que compra ou deixa de comprar, é um espelho que reflete fora o que você pensa e sente por dentro.
No livro Jogue Fora 50 Coisas, a americana Gail Blanke treina a prática do desapego de forma inteligente. Para começar, ela não facilita a contagem dos itens que devem ir embora: dezenas de livros contam como uma única coisa, assim como sapatos e maquiagens, por exemplo. Mas por que nos apegamos a tantas coisas?
A linguagem das coisas
Deyan Sudjic, diretor do Museu de Design de Londres, fez uma análise irônica sobre as verdadeiras razões pelas quais consumimos no livro A Linguagem das Coisas. Ele revela quais os impulsos inconscientes que determinam o ato de comprar e como a indústria nos captura por meio do design e da publicidade. Para ele, entender o desejo de manter uma coisa pode acabar revelando motivos que talvez estivessem ocultos antes.
“Os objetos são o que usamos para nos definir e para sinalizar aos outros quem somos”, afirma Sudjic. “Sapatos, automóveis ou a decoração da casa são elementos que empregamos para exteriorizar nossa personalidade, tanto quanto para ajudar a construí-la. É uma via de duas mãos”, afirma a psicóloga Maria Cândida do Amaral.
De frente com o inimigo
Para se desfazer de 50 itens, Gail aconselha a manter três sacos pretos com as etiquetas: vender, guardar e doar. Mas também avisa que, ao jogar as coisas fora, em algum momento entramos em contato com um inimigo oculto: nossas crenças.
O problema com as crenças é que elas se ancoram em meias verdades. Ter medo de descartar algum objeto caro apenas pela ideia de que nunca mais se poderá comprar outro igual é uma delas. Mas será que isso é definitivo? Será que se tivéssemos o dinheiro em mãos compraríamos exatamente as mesmas coisas, sem utilidade? É óbvio que não.
Nosso homem neolítico
Se no Neolítico os homens das cavernas colecionavam clavas, hoje o leque de opções se ampliou consideravelmente: é só a gente dar um pulo num shopping para se certificar disso. Mas segundo o inglês John Naish, autor de Chega de Desperdício!, nossos ancestrais tinham muitas mais clavas, flechas, facas ou enfeites do que necessitavam. Ficavam horas a esculpi-los ou entalhá-los, e os fabricavam com características diferentes. E por quê? Ora, pelas mesmas razões de hoje: por prazer. E também para impressionar os outros e ganhar prestígio social dentro da tribo.
No Neolítico, ser rejeitado pelo grupo significava morrer. Naquele tempo uma pessoa não tinha muitas chances de sobreviver se fosse deixada sozinha numa floresta. E não pense que você está imune a isso. Mesmo para aqueles que optaram por uma vida mais simples, o desejo de impressionar pode continuar latente por debaixo do pano.
Limitações e associações
O mestre espiritual Gurdjieff vem à tona. Ele fala que somos movidos pelas associações que damos às pessoas, situações e coisas. Colocamos etiquetas emocionais nelas e na verdade é a elas que somos ligados. Isto é, uma xícara não é só uma xícara, mas uma herança da tia Elza. Quanto mais identificação com essas associações, pior é. Segundo Gurdjieff, elas nos impedem de ver a realidade como ela é, onde as coisas são apenas coisas, sem valor intrínseco.
De acordo com Gurdjieff, desde que vista conscientemente, a associação não atrapalha mais. Quanto mais conseguirmos enxergar nossos condicionamentos e o nosso limitado modo de pensar, mais essa visão mostra nossa situação de inconsciência de nós mesmos. E, para ele, observar nossas atitudes é o que vale, pois é o ponto de partida da busca pela consciência.
Voltando à lista dos 50 itens, Gail garante que o último deles é uma espécie de centésimo macaco: depois de o ter atingido, tudo pode mudar definitivamente em nossas vidas. E pelo menos ficamos livres de um enorme peso que atravancava o caminho.
Fonte: Viver Bem